Regime jurídico da educação especial e do apoio educativo
PARECER
O Projecto de Decreto Legislativo Regional sobre o Regime Jurídico da Educação Especial e do Apoio Educativo, na sua 4ª versão, retoma aspectos do anteprojecto de decreto-lei que foi objecto de consulta pública no continente e que foi amplamente contestado por se considerar uma nova organização do sistema de resposta às necessidades educativas especiais assumindo, de novo, a concepção médica e psicológica, preconizando um modelo uniforme de aplicação com duas vias: a educação especial e o apoio educativo.
No processo de avaliação dos resultados da ?consulta? pública tornou-se claro, então, que a construção, para as necessidades educativas especiais, de um sistema paralelo ao sistema regular de ensino nunca conseguirá o desígnio da Declaração de Salamanca. Tal como afirma Sérgio Niza, “(?)o sistema alternativo de escolaridade provou rapidamente que, tal como na geometria, os sistemas paralelos nunca se encontram”.
É de salientar que uma abordagem consistente e sistemática ao tema das necessidades educativas especiais, exige que se conheça, com rigor, o sistema de apoio actualmente em vigor, pelo que, e considerando a necessidade de garantir um conjunto diversificado de respostas de qualidade melhor adequado aos alunos com necessidades educativas especiais, dever-se-á, antes de mais, garantir uma avaliação externa da aplicação do decreto-lei nº319/91, de 23 de Agosto e dos vários Programas Especiais criados na R.A.A. (Cidadania e Oportunidades), com o objectivo de verificar os constrangimentos e as boas práticas.
Na generalidade, o documento que nos é agora apresentado, apesar de explicitar no seu preâmbulo um conjunto de conceitos e princípios que merecem a nossa concordância, no seu articulado subverte os princípios definidos na Declaração de Salamanca e no decreto-lei n.º 319/91 de 23 de Agosto, nomeadamente no que concerne à definição de necessidades educativas especiais.
Mais, este diploma não traz novidade relativamente à proposta de revogação do decreto-lei n.º 319/91 de 23 de Agosto, efectuada pelo ex-ministro da educação David Justino, que foi fortemente contestada por todos os técnicos de educação, associações de pais, associações vocacionadas para defender os interesses de pessoas portadoras de deficiência, associações sindicais, Conselho Nacional de Educação e pela sociedade em geral.
Consideramos que o presente diploma retoma, no fundamental aquela proposta de decreto lei e, tal como ela, merece a nossa discordância.
A Secretaria Regional da Educação ainda não percebeu, ou não quer perceber, o verdadeiro significado dos conceitos que levam, na medida do possível, todos os alunos a aprenderem juntos. Nesta óptica, a discussão dos conceitos de inclusão, de educação especial, de necessidades educativas especiais, de diferenciação curricular, de individualização do ensino, para só mencionar alguns, não têm passado de uma contínua retórica, dando, azo às mais variadas interpretações e deixando muito longe o encontrar de soluções pragmáticas que permitam a obtenção de resultados concretos.
O facto de se definir aqui as necessidades educativas tendo por referência critérios de classificação de foro clínico constitui um atraso de 27 anos na história da educação. Senão vejamos: o conceito de ?NECESSIDADES EDUCATIVAS ESPECIAIS? surgiu pela primeira vez no relatório de WARNOCK (1978) e desde então que em educação não existe o conceito de deficiência aplicada à educação.
Na Declaração de Salamanca explicita-se que a expressão “necessidades educativas especiais refere-se a todas as crianças e jovens cujas carências se relacionam com deficiências ou dificuldades escolares. Assim, os alunos com ?necessidades educativas especiais? são aqueles que revelam precocidade ou atraso na aquisição dos conteúdos curriculares relativamente aos alunos da mesma faixa etária e, que, por esse motivo, necessitam que a escola se adapte às suas características e lhes proporcione experiências facilitadoras da aprendizagem e de uma progressiva autonomia.
O conceito ?necessidades educativas especiais? enfatiza, que a avaliação que “sinaliza” a sua detecção deve ter por referência ?CRITÉRIOS DE FORO PSICO-PEDAGÓGICO? e é a partir deste tipo de avaliação que as necessidades educativas deverão ser identificadas de modo a que se providenciem os recursos materiais e humanos necessários, a aplicação das metodologias e das estratégias de ensino correctas, a adequação dos espaços e dos grupos de alunos, respeitando as suas diferenças individuais.
A classificação baseada em critérios de foro exclusivamente clínico, apenas indica um ?RÓTULO? e não dá qualquer pista para a intervenção pedagógica. Mais, a classificação com base na definição de incapacidade não indica as capacidades de que o aluno é portador nem orienta a prática pedagógica.
Pensamos, por exemplo, que os alunos, cujas dificuldades de aprendizagem decorrem de défices sensoriais, problemas motores e de dificuldade temporária de aprendizagem, nem sempre necessitou ser avaliados pelo psicólogo e apenas é necessário identificar as metodologias, as estratégias de ensino e os meios de comunicação a utilizar com esses alunos. Se é um facto que houve um esforço da SREC em dotar as escolas com psicólogos, a estes foram e são atribuídas competências, que extravasam o seu âmbito de actuação e que deveriam ser desenvolvidas por outros técnicos (terapeutas, técnico auxiliares?) que, com os psicólogos, e com os professores de educação especial constituiriam equipas multidisciplinares.
Seriam estes serviços especializados de apoio, centrados na Escola, que poderiam dar uma resposta integrada às necessidades educativas especiais, permitindo ainda uma maior rentabilização dos recursos.
Relativamente à formação dos docentes que trabalham com alunos com N.E.E., o documento é muito vago e cria uma separação artificial entre docente da educação especial e docente de apoio educativo. Esta distinção artificial resulta de uma tentativa de diferenciar apoios educativos e educação especial quando, em nosso entender, em ambas as situações há “apoios educativos especiais” por contraposição ao ensino dito regular.
O documento parece ainda ter uma baixa expectativa relativamente ao desempenho escolar dos alunos com N.E.E. Estes alunos devem ser valorizados pelas suas competências e não pelas suas incapacidades. Verifica-se, nesta proposta, um desinvestimento na certificação das habilitações alcançadas, nomeadamente no que se refere ao certificado de cumprimento da escolaridade obrigatória que não contempla a possibilidade de um aluno do regime educativo especial poder prosseguir estudos.
Apesar de este documento referir que a responsabilidade sobre a educação/ensino dos alunos deve ser partilhada por todos os intervenientes no processo educativo dos mesmos fica a impressão de que, em vez de existir um currículo orientador das aprendizagens e das competências a desenvolver por todos os alunos, existe mais do que uma via de ensino.
Para concluir, se pretende criar ambientes de sucesso para alunos com N.E.E., é necessário compreender o processo que conduz a atendimentos eficazes potenciadores do desenvolvimento das suas capacidades. Nesse sentido, é preciso atribuir aos conceitos de inclusão e de educação especial o valor e o significado que, realmente merecem para que seja possível ao aluno com N.E.E. ter sucesso numa escola regular e de preferência numa turma regular dessa escola.
Na Especialidade
Não pretendendo dar um parecer na especialidade sobre esta proposta de Decreto Legislativo Regional, uma vez que a rejeitamos na globalidade, considerando alguns pontos, pela sua gravidade, merecem um destaque especial.
O primeiro aspecto a salientar está contido no próprio Preâmbulo, quando se afirma: ? Aliás, a incorrecta inclusão de crianças no sistema de educação especial tem sido um dos mais graves factores de perda de qualidade do sistema educativo, em particular no 1º Ciclo do ensino básico?. Tal afirmação só pode ser resultado do profundo desconhecimento da Secretaria Regional da Educação relativamente ao que é a educação especial ou sua desconfiança sistemática relativamente aos docentes. Nunca, em circunstância alguma, a inclusão de alunos na educação especial pode conduzir à perda de qualidade do sistema educativo, muito pelo contrário.
Constatamos que no art.º 7º ponto 2 deverão ser especificadas que respostas educativas se podem desencadear sem anuência parental, uma vez que este ponto entra em contradição com o ponto 6 do art.º 15º.
No artigo 8º é de salientar a grande confusão entre o que são objectivos da educação especial e do apoio educativo e o que são competências da administração regional. Aliás, o artigo 10º volta a repetir, no seu título, os objectivos da educação especial. Esta confusão, que se verifica também a nível de conceitos, dificulta a leitura do documento e pode dar origem a interpretações diversas.
A própria organização do articulado é confusa, não se compreendendo, por exemplo, qual a razão que leva a incluir na Secção II do Capítulo II, relativa ao Regime Educativo Especial, o Princípio da Adequação (artigo 13º), que deveria estar incluídos no Capítulo I, Secção II, Princípios Orientadores.
No artº 14º, ponto 2, não é especificado o que se entende por “unidades especializadas”.
No artigo 16º, preocupa-nos o encaminhamento precoce para a vida activa de alunos com N.E.E. A orientação dos alunos com necessidades educativas especiais para programas profissionais aos doze anos de idade consiste, na realidade, na exclusão destes alunos da escola regular, o que contraria claramente os princípios da Declaração de Salamanca e o Direito Constitucional à Educação. Dever-se-ia apostar no sistema educativo e promover junto dos professores formação adequada que lhes dê segurança profissional para por em prática pedagogas activas que envolvam todos os alunos na aprendizagem, no respeito pela diferenças individuais. É a escola que se deve adaptar às necessidades dos alunos e não estes às necessidades da escola.
Considerando que há um número elevado de alunos que abandonam a escola e que após a escolaridade obrigatória não prosseguem estudos no ensino secundário e universitário, considera-se importante promover a possibilidade de realizar experiências de profissionalização por parte de todos os alunos. Esta seria uma opção apropriada a uma política educativa de inclusão.
Os artigos 19º e 20º constituem verdadeiras aberrações. O projecto educativo não deve nem pode ser feito exclusivamente pelo psicólogo, pois são os docentes quem tem a formação pedagógica indispensável para conhecer as necessidades educativas dos alunos e as medidas capazes de fazer face às mesmas. Consideramos que há uma contradição com o previsto no art.º 15º e discordamos do facto desta competência estar apenas cometida aos Serviços de Psicologia e Orientação.
Este projecto terá sempre que ser aprovado pelo Conselho Pedagógico, que é o órgão, como o próprio nome indica, vocacionado para as questões pedagógicas.
No que se refere à intervenção precoce, desenvolvida nos artigos 21º e 22º, continua-se a insistir na sua transferência para o Serviço Regional de Saúde, quando deveria fazer parte do Sistema Educativo, possibilitando um acompanhamento continuado destes alunos e das famílias ao longo do seu percurso educativo.
Continuamos a não compreender no ponto 6. do artigo 27º, a inclusão das aulas de substituição no apoio educativo. Na prática, o que sucede é que, para fazer aulas de substituição os docentes deixam, efectivamente, de dar apoio educativo aos alunos com dificuldades de aprendizagem. É inconcebível planear apoios educativos sem prever os professores disponíveis devido ás aulas de substituição que têm que dar. O resultado da distinção artificial que se faz entre educação especial e apoio educativo acaba por se traduzir na falta efectiva de “apoios para alunos com necessidades educativas especiais” no seu verdadeiro sentido.
Relativamente ao artigo 32º, continua a verificar-se uma grande confusão quanto ao que se entende por avaliação. A avaliação é um processo contínuo que parte da observação naturalista do aluno em grupo, na sala de aula, no recreio, no refeitório,…, o que significa que em grande parte, ocorre na componente lectiva. É evidente que alguns procedimentos administrativos, antecedentes e subsequentes, terão que ocorrer na componente não lectiva, mas a avaliação do aluno não pode ser excluída da componente lectiva.
Finalmente, preocupa-nos, no artigo 40º, a revogação do artigo 8º do Decreto Legislativo Regional nº 14/98/A, de 4 de Agosto, que se refere à lotação máxima das turmas do pré-escolar que integram crianças com necessidades educativas especiais. Se a isto acrescentarmos o facto de, em todo o documento, a única referência à educação pré-escolar se encontra no artigo 2º, não se vislumbrando qual o regime de atendimento das crianças nesta faixa etária, supõe-se que se pretende aplicar-lhes o mesmo regime do 1º Ciclo do Ensino Básico, sem ter em atenção que esta faixa etária tem características específicas, necessitando de medidas diferentes.
Ponta Delgada,11 de Abril de 2005
A Direcção