O direito de informar, de se informar e de ser informado está consagrado no artigo 37º da Constituição da República Portuguesa, razão pela qual o Ministério da Educação, ao pretender usar desta liberdade, mais uma vez, tornou públicos os resultados dos exames nacionais do 12º ano, julgando que está a prestar um bom serviço ao país, fazendo jus à desejada transparência dos serviços públicos.
Não pretendo, de modo algum, pôr em causa o direito que os cidadãos têm de estar informados, no sentido de poderem formular uma opinião crítica e de terem um papel interventivo na sociedade à qual pertencem. Porém, quando essa informação é passível de manipulação, induzindo a juízos de valor menos correctos, é nossa obrigação alertar para algumas injustiças que se cometem.
O Ministério da Educação, nos seus intentos obscuros, insiste em pretender que a sociedade faça, de forma redutora, uma avaliação do trabalho desenvolvido pelas escolas através de uma mera leitura dos resultados dos exames nacionais, descontextualizados do processo ensino-aprendizagem e desfasados dos objectivos e finalidades a que o sistema educativo se propõe. Esquece-se, porém, que muitas das razões de tal insucesso são endógenas ao próprio sistema de que o Ministério é o principal responsável, não tendo demonstrado capacidade nem competência para agir sobre elas.
Os exames não podem constituir o único instrumento de avaliação das escolas porque, como dizia um colega meu, constitui um ?termómetro avariado?, dado que, nas mesmas condições, nem sempre se comporta da mesma maneira. A demonstrá-lo está o facto de na mesma escola e com o mesmo professor os resultados obtidos nos exames de uma determinada disciplina serem num ano bons e no outro maus, consoante as turmas. Tal facto explica a existência de causalidades múltiplas que interferem no processo de aprendizagem, pelo que estigmatizar escolas ou imputar responsabilidades directas a quem quer que seja, com base num único elemento de avaliação, é um exercício de irresponsabilidade.
Esta vontade explícita de condenação da escola pública e, quiçá, de exaltação do ensino privado, visível nos tão propalados ?rankings? das escolas, traduz uma desonestidade intelectual atroz, ao pretender-se comparar o incomparável, uma vez que só a pura hipocrisia não permite ver que as condições de acesso e de sucesso em ambos os sistemas são tão desiguais quanto o são as ambições, os projectos de vida e as condições sócio-económicas das crianças e jovens que as frequentam. Basta ter em consideração que a escola pública vive apenas com os magros recursos financeiros do orçamento geral do Estado, enquanto as privadas partilham um duplo orçamento, o que vem do Estado e o que advém das gordas mensalidades das famílias, que, por sinal, detêm os maiores recursos do país.
Vejam se nos colégios privados proliferam as turmas heterogéneas, as crianças com necessidades educativas especiais, os alunos provenientes de bairros degradados partilhando a fome, a miséria, a pobreza, o analfabetismo, o alcoolismo e a droga, se há diversidade étnica, se há quem divida quartos desconfortáveis com dois, três, quatro irmãos, ou outros familiares, sem uma secretária onde possam estudar, sem uma estante onde possam consultar uma enciclopédia e sem um computador onde possam aceder à internet . Vejam se nos colégios privados há meninos que nunca viram uma peça de teatro, manipularam um jornal ou uma revista, ou fizeram uma qualquer viagem marítima ou aérea, se há, porventura, quem tenha de partilhar os trabalhos rurais ou as tarefas domésticas a quem é entregue, muitas vezes, a responsabilidade de cuidar dos irmãos mais novos, de contribuir com o trabalho infantil para o sustento da família, ou de sofrer todo o tipo de violência para frequentar a escola sob ameaça de retirarem aos pais o dito rendimento social de inserção.
É importante que os governantes, os analistas, os fazedores de opinião tenham consciência de que é este mundo que a escola pública acolhe e que a privada rejeita. É bom que saibam que é na escola pública que estão as ?Joanas? deste país, e que é lá que se encontra a maioria das crianças e jovens que sofre, em silêncio ou com revolta, as injustiças da nossa sociedade. É bom que saibam que são os professores do ensino público que amparam este choque gritante da sociedade, a quem o sistema lhes pede para integrar e não excluir, para ser cooperante e não competitivo, para educar e não apenas instruir, em suma, para promover a cidadania solidária, os valores humanistas e não a competição, o individualismo, o egoísmo e o culto dos melhores.
Os professores do ensino público vivem o sufoco permanente da contradição do sistema que ora lhes exige e pede um modelo de ensino e de avaliação, sobretudo no Ensino Básico, do o 1º ao 3º Ciclo, que relativize os aspectos cognitivos em favor da construção da cidadania, dos comportamentos, das atitudes, dos valores, do saber ser e estar, impondo que a retenção dos alunos até ao 9º ano de escolaridade seja a menor possível, para evitar o abandono e insucesso escolar nem que seja administrativamente, para, logo de seguida, no Ensino Secundário fazer-se a inversão dos valores, onde a cultura da exigência e as finalidades do ensino se alteram radicalmente, apesar da tão defendida articulação curricular entre os diversos níveis e ciclos de ensino, esquecendo-se de que faltam aos jovens os hábitos de trabalho e as bases necessárias para o desejado sucesso.
Sente-se que estamos a viver um período de grande confusão, clara indefinição e alguma tensão, onde parece sobrelevar algum desejo de regresso ao passado. Os professores sentem-se ?desnorteados? neste terreno movediço onde ora se exaltam as virtudes dos exames e se exige que todo o esforço de aprendizagem seja direccionado neste sentido, ora se relativiza a sua importância e exalta a avaliação contínua assumindo que não é possível nem justo pretender-se avaliar numa ou duas horas o que foi construído em vários anos. Importa salientar que, não raras vezes, se acusam as equipas ministeriais de estarem distanciadas da realidade escolar, com critérios de exigência desfasados do contexto educativo e das aprendizagens reais dos alunos.
É com esta dualidade de critérios que o Ministério da Educação entra em contradição ao pretender, por um lado, que a sociedade avalie o trabalho das escolas e dos professores tendo, unicamente, por base o resultado dos exames nacionais, quando, por outro lado, o próprio Ministério lhe atribui apenas um peso relativo para a nota final dos alunos, o que, só por si, traduz a pouca significância que estes, no seu entender, devem ter no contexto global do processo educativo.
Não é possível continuar a alimentar esta ambiguidade, sob pena de se instalar o caos na escola pública. Quem sabe se não constituirá o propósito de alguns!
Armando Dutra