Uma questão controversa!
Como todos se recordam, foi o CDS Partido Popular, através do seu Presidente Paulo Portas, quem, na última campanha eleitoral, mais exaltou as virtudes deste processo de avaliação, tão característico de uma escola tradicional onde a exigência, o rigor, a ordem, a autoridade e a disciplina, associada ao castigo, criavam a atmosfera e a ambiência propícia a uma aprendizagem que tinha objectivos muito concretos e facilmente mensuráveis, traduzidos na aprendizagem dos conteúdos programáticos das diversas disciplinas que se eternizavam no tempo, através de manuais escolares que, no mínimo, satisfaziam as necessidades de uma geração, por entender-se que tais saberes, considerados estruturantes e essenciais, garantiam a necessária formação do homem e do desenvolvimento da sociedade.
Estávamos perante uma escola onde a aquisição dos saberes não dependia apenas da vontade individual, recorrendo, com facilidade, à chamada ?motivação extrínseca?, onde o vime, a régua e a palmatória estavam quase sempre presentes na aprendizagem da tabuada, das contas, dos ditados, dos problemas, das célebres ?lições de cor? e onde a palavra de ordem dava lugar ao silêncio porque os resultados, a bem ou a mal, tinham que aparecer, não fosse o Sr. Professor ficar envergonhado no exame dos seus alunos, geralmente realizados na sede do Concelho. Importa, contudo, salientar que o exame não era para todos, era apenas para aqueles que tinham dado provas ao professor que iam fazê-lo com sucesso.
Nesta escola, regra geral, de quatro classes, normalmente dividida por sexos, de trinta, quarenta ou mais alunos por turma, onde a indisciplina nunca foi problema, muitos não tinham lugar, porque apenas tomavam assento os que queriam aprender ou aqueles a quem os pais davam a oportunidade de experimentar se pretendiam a fadiga da cabeça ou, caso contrário, o sacrifício do corpo. Recorde-se que a vida, quer em terra quer no mar, era rude e dura, em virtude de serem poucas as tecnologias mecanizadas que estavam ao serviço do homem.
Na verdade, dispunha-se de um sistema educativo que exigia do docente mas, em contrapartida, concedia-lhe autoridade, liberdade de acção e reconhecimento social, porque, nesta sociedade, cada um era mestre na sua arte, razão pela qual todos confiavam no trabalho do professor que, praticamente, se preocupava com a instrução dos seus alunos, rentabilizando, ao máximo, o tempo disponível, porque a educação, assente no respeito pelos mais velhos, pelos superiores, pela autoridade, pelas instituições e pelos valores da época, era um dado adquirido que raros ousavam pôr em causa. As atitudes e valores não constituíam objecto de avaliação, porque o saber ser e estar, fruto do temor ou da repressão, era um dever normal de qualquer cidadão.
Democratização da sociedade
Transformação do papel da escola
Com o 25 de Abril de 1974 a sociedade portuguesa democratizou-se, exaltaram-se os valores individuais, valorizou-se a liberdade, sentiu-se o progresso, experimentou-se a vida fácil, modificaram-se os hábitos familiares, em suma, transformou-se a sociedade e, por conseguinte, o papel da escola. É no contexto desta evolução, marcada pelo desenvolvimento das ciências da educação, das teorias da aprendizagem, dos métodos e técnicas de ensino, das sucessivas experiências e reformas, que a escola não consegue alcançar os resultados desejados, surgindo daí um certo saudosismo, ainda que envergonhado, de regresso ao passado. A uma escola segregadora e selectiva sucedeu uma escola democrática e permissiva, onde se pensava que a aprendizagem lúdica e a magia do professor seriam suficientes para compensar a supressão do esforço do aluno.
Perante o reconhecimento do demasiado facilitismo que os sucessivos governos promoveram, com fins meramente estatísticos, mas que agora não pretendem publicamente assumir transferindo, injustamente, o ónus da questão para o professor, surgem algumas medidas supostamente tendentes a moralizar e a credibilizar o sistema.
Introdução de exames regionais
Tanto no espaço nacional como no regional, a introdução dos exames ao nível do Ensino Básico afigura-se, novamente, como a solução do problema. Curiosamente enquanto a Srª Ministra da Educação, posicionada no espectro político mais à direita, ainda não teve a coragem de implementar todas as medidas preconizadas pelo seu parceiro de coligação, ao defender a aplicação dos exames de forma extensiva ao 4º, 6º e 9º ano de escolaridade, porventura por considerar que tal decisão seria demasiado forte, pondo em causa a escola democrática, muitas teorias da educação e a política educativa seguida até então, eis que na Região, com um governo posicionado num espectro político mais à esquerda, o Sr. Secretário da Educação e Ciência não se faz rogado em introduzir, embora com outra designação mas com o mesmo espírito, os ditos exames, com o nome de provas aferidas, nos anos terminais de ciclo, para gáudio, concerteza, do Dr. Paulo Portas.
Se estou errado, digam-me em que diferem estas provas aferidas dos exames do 9º ano de escolaridade anunciados pela Srª Ministra da Educação? Não são realizados por uma entidade externa à escola, neste caso a Direcção Regional da Educação? Não se aplicam à generalidade dos alunos no âmbito da Língua Portuguesa e da Matemática? Não interferem na avaliação sumativa dos alunos em cerca de 25%? A única diferença é que o Sr. Secretário da Educação e Ciência pretende ?matar dois coelhos com uma cajadada?, ou seja, sob a capa da avaliação aferida, generalizar a aplicação dos exames a todos os ciclos de ensino.
Não pretendo com esta argumentação fazer juízos de valor positivos ou negativos, embora, como cidadão, me sinta confuso com estas e outras decisões que rompem com os quadros de referência que deveriam nortear os governos, consoante as suas orientações politico-partidárias. O que pretendo, sobretudo, é alertar para algumas incongruências que me parecem evidentes e para a necessidade de se clarificar que rumo queremos dar à educação, sob pena de se instalar a maior confusão sobre quem tem a nobre mas difícil tarefa de educar.
Exames do Ensino Básico: o que se pretende?
A questão que coloco é muito clara: O que é que se pretende com a introdução dos exames no Ensino Básico? No final do Ensino Secundário, pode concordar-se ou não, ainda se compreende porque visa criar mais um obstáculo para o acesso ao Ensino Superior. Agora no Ensino Básico, numa escolaridade obrigatória que é de nove anos e que em breve passará para doze, considerando as orientações da política educativa actual, é bem mais difícil de entender. Na verdade, o que me parece é que se pretende desacreditar a avaliação contínua, porque os exames vão, precisamente, demonstrar que os resultados da avaliação interna não correspondem aos da avaliação externa pondo, assim, em causa, perante a opinião pública, a credibilidade dos professores e da sua avaliação. Importa, por isso, esclarecer esta questão.
Quando um docente faz a avaliação dos seus alunos, no Ensino Básico, o sistema obriga que ele tenha em consideração um conjunto de critérios dos quais o conhecimento representa apenas dois terços ou três quartos da nota que é atribuída no final do período ou do ano. Não admira, pois, que muitos alunos de nível três venham a ter resultados negativos no exame, porque este apenas avalia conhecimentos. Se pretendemos evitar ou pelo menos diminuir estas aberrações e passar a valorizar apenas o conhecimento, como era no passado, o sistema educativo tem de ser claro perante a sociedade e honesto para com os professores, pois não pode exigir que estes sigam um certo caminho e cumpram com determinados objectivos, para depois pretender avaliar e julgar o seu trabalho tendo em conta outros parâmetros. Se pensam que com os exames estão a repor a verdade na avaliação, ou se pretendem com eles criar tampões para dificultar a transição dos alunos entre os diversos ciclos, creio que mais facilmente atingiriam esses objectivos se dessem indicações claras aos professores para fazerem uma avaliação criteriosa, com base nos reais conhecimentos dos alunos , em função dos conteúdos programáticos.
Reparem só nas orientações preconizadas, na Região, para o 1º Ciclo do Ensino Básico, em matéria de retenção, e digam-me que resultados se podem esperar no exame ou na prova aferida que os alunos farão no 4º ano de escolaridade. No 1º ano de escolaridade não há lugar à retenção, o que quer dizer que todos passam do 1º para o 2º ano. No 2º e 3º anos de escolaridade a retenção é uma medida pedagógica de carácter excepcional e só pode ocorrer, entre outras circunstâncias, se tiver a concordância do encarregado de educação. Perante este cenário, onde é retirado ao docente a capacidade de decisão da progressão ou retenção do aluno, como é que se pode responsabilizar o professor se o sistema é que determina a condução de todo o processo ensino-aprendizagem, permitindo que os alunos possam transitar de ano para ano, nos outros ciclos, com duas, três ou mais negativas, num constante acumular de insucessos, para depois exigir, em provas nacionais ou regionais, bons resultados nos finais de ciclo?
Os governos têm legitimidade para decidirem as políticas educativas que entenderem mas, ao menos, façam-no com coerência, clareza e respeito pelos outros.
Armando Dutra